O Paradoxo do Setor Social: Mais Exigência, Menos Recursos. Haverá Futuro?
- São João de Deus
- 7 de out.
- 3 min de leitura

Introdução: A Encruzilhada do Setor Social
O setor social em Portugal encontra-se numa encruzilhada crítica. Por um lado, é um pilar fundamental da nossa sociedade, apoiando os mais vulneráveis e preenchendo lacunas que o Estado não consegue cobrir sozinho. Por outro, enfrenta um paradoxo que ameaça a sua própria sustentabilidade: a exigência de profissionalização aumenta exponencialmente, enquanto os recursos – humanos e financeiros – se mantêm escassos ou até diminuem. Como podem as organizações navegar neste terreno tão complexo?
O Aumento da Exigência Regulamentar: A "Era da Conformidade"
As entidades tutelares, com a Segurança Social à frente, têm vindo a elevar drasticamente o nível de exigência. Já não basta a boa vontade e o compromisso com a causa. Hoje, as IPSS e outras organizações são avaliadas pela sua capacidade de cumprir um emaranhado de leis, normativos e procedimentos internos, que parecem multiplicar-se diariamente.
Esta "era da conformidade" exige:
Rigor na Gestão Financeira: Prestação de contas detalhada, controlo orçamental e aplicação estrita das regras de contabilidade.
Procedimentos Formalizados: Desde a gestão de recursos humanos até aos protocolos de atendimento, tudo deve estar documentado e ser passível de auditoria.
Transparência e Accountability: A sociedade e os financiadores exigem uma gestão irrepreensível e transparente.
A Realidade Interna: A Lacuna de Competências de Gestão
Face a este cenário, deparamo-nos com a realidade da maioria das organizações: a gestão continua, maioritariamente, nas mãos de voluntários. Estes dirigentes são, frequentemente, pessoas de enorme coração e dedicação, mas que não possuem formação ou experiência em gestão.
Esta lacuna cria uma desconexão perigosa:
Voluntários vs. Burocracia: Um voluntário motivado pelo propósito social pode sentir-se assoberbado e frustrado com a complexidade da burocracia.
"Fazer o Bem" vs. "Fazer Bem Feito": A paixão pela causa é essencial, mas já não é suficiente. É preciso aliar essa paixão a competências técnicas para "fazer bem feito" do ponto de vista administrativo e financeiro.
O Estrangulamento Financeiro: A Impossibilidade de Contratar Gestores
O terceiro vértice deste triângulo problemático é o financeiro. A precariedade do financiamento público e a dificuldade em angariar donativos privados impossibilitam a contratação de profissionais de gestão. Como pagar um salário de mercado a um gestor qualificado quando os recursos mal chegam para cobrir as despesas operacionais básicas?
A Consequência Inevitável: A Fuga de Dirigentes Voluntários
O resultado desta tempestade perfeita é o que estamos a testemunhar: é cada vez mais difícil encontrar pessoas disponíveis para assumir os cargos de dirigentes voluntários. O peso da responsabilidade legal, a complexidade das tarefas e o risco pessoal associado estão a afastar os voluntários, precisamente quando mais precisamos deles. O futuro do setor parece, de facto, comprometido.
Apresentando uma Solução: Não Uma Fórmula Mágica, Mas Um Caminho Possível
Perante um problema tão complexo, não há soluções simples. No entanto, o futuro não tem de ser necessariamente sombrio. A solução passa por um modelo híbrido e colaborativo, que assente em quatro pilares:
Capacitação e Formação Contínua: As entidades federativas (União das Misericórdias, CNIS, etc.) e o próprio Estado devem investir em programas de formação intensiva e acessível para dirigentes voluntários. Formação em "gestão para não gestores", focada em áreas como contabilidade básica, jurídica e liderança de equipas.
Consultoria Pro Bono e Voluntariado Especializado: É crucial criar plataformas que liguem as organizações sociais a profissionais de gestão (contabilistas, gestores, juristas) dispostos a doar algumas horas do seu tempo por mês em regime pro bono. Um contabilista voluntário pode, por exemplo, supervisionar os processos financeiros sem ter de ser um membro efetivo da direção.
Fusões e Partilha de Recursos: As organizações mais pequenas e vizinhas devem considerar a partilha de recursos. Podem partilhar um único gestor financeiro ou um serviço contabilidade centralizado, reduzindo custos e ganhando competência.
Reconhecimento do Papel do Gestor Social: É necessário que o Estado e a sociedade civil reconheçam que a gestão é uma função crítica no setor social. Isto deve refletir-se na criação de linhas de financiamento específicas para a profissionalização da gestão, entendendo-a não como um custo, mas como um investimento na sustentabilidade e na qualidade do serviço prestado.
Conclusão: Reinventar o Modelo para Preservar a Missão
O setor social não pode morrer de sucesso. A sua missão é demasiado importante. A solução não está em pedir aos voluntários que sejam super-heróis, mas em criar um ecossistema de apoio que lhes dê as ferramentas para terem sucesso. A profissionalização da gestão, através de modelos inovadores , não é uma traição ao espírito voluntário; é a sua evolução necessária para garantir que o setor social continue forte, transparente e capaz de cumprir a sua nobre missão no Portugal de amanhã.
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